Saí sem máscara hoje e me senti nu
Calma.
Não me xingue.
Foi um acidente.
Pela manhã retomei um antigo hábito de levantar cedo, pegar o tênis e ir caminhar um pouco. Pra ganhar uns minutos de vida lá no futuro. Uns minutos ganhos aqui e ali podem me garantir alguns dias a mais aqui na Terra. Uns anos quem sabe.
Enfim, não é esse o tema dessa nossa conversa. Fato é que na correria (mas pode chamar de caminhada) eu saí e quando já estava lá pela metade do caminho fui coçar a bochecha e senti falta da máscara no rosto.
Desespero. Sentimento de culpa. Dúvidas.
“Será que volto pra buscar? Será que faço uma caminhada mais curta?”, todos esses pensamentos me passaram pela cabeça. É a primeira vez em muitíssimos meses que saio da porta da minha casa desnudo. E claro, como todo bom paranoico, tão logo percebi essa falta, me senti exposto.
Decidi caminhar por ruas mais desertas pra diminuir o risco. Mas pra chegar até ela é preciso passar uma mais movimentada. E agora?
A gente tranca a respiração e vai. Como caminhar sem respirar? Bora tentar.
Passa um cara por mim com uma bela máscara de pano. Eu quase posso garantir que ele me olhou feio.
Uma moça com uma PFF2 cruzou meu caminho e posso jurar que por baixo da máscara ela me mostrou a língua em desaprovação.
Mais adiante em um comércio fechado na frente de um ponto de ônibus estão duas pessoas, certeza que vem mais julgamento. Opa, peraí. O tiozinho também está sem máscara e me dá um sorriso como quem aprova. Mas calma aí, eu não estou feliz com isso não, meu senhor!
Uma menina está com a máscara no queixo enquanto fuma. Mais ao lado dela duas senhoras vindo com sacolas de compra e, claro, usando máscaras. Olhares acusatórios.
A sensação é de estar sendo amplamente julgado. Que horror. Que tormento.
Se eu tirar minhas calças eu acho que os olhares serão menores do que estar sem máscara.
Começo a andar então pelo outro lado da calçada, como um vampiro fugindo de frestas de sol que entram em seu castelo após ele ser pego desprevenido com o amanhecer, vou me esgueirando pra evitar ser visto e observado.
Finalmente uma rua deserta, posso respirar aliviado. Mas não fundo. Não sei quem esteve aqui minutos antes de mim, né?
Decido que o melhor é aceitar o golpe do destino e encurtar a caminhada, amanhã volto mais cedo (e mascarado) e compenso os minutos perdidos de hoje.
E então me lembro do desafio final, entrar no meu prédio sem ser visto. Apesar das leis estarem afrouxadas, ainda é obrigatório o uso das máscaras. Logo eu que nunca deixei de usar. Agora que falta tão pouco vou tomar uma multa? Seria demais.
Bom, antes a multa do que a Covid. Pior ainda se receber as duas. Credo. Bato na madeira imaginária dos meus pensamentos e vou mais uma vez como um espião, andando meio de ladinho, nas sombras, tentando ser ocultado por pilastras e portões.
Mal entro no prédio e dou de cara com o zelador que me vê de costas e dá bom dia. Com um movimento quase acrobático eu disfarço e viro de lado, evitando ao máximo o contato visual. Especialmente o dele com o meu rosto. Pelo menos não hoje.
E daí que ele torce pro Corinthians e eu pro Palmeiras? Ele que pense que eu estou fugindo da brincadeira sadia após perder o jogo. É até melhor que pense nisso.
Vou na ponta dos pés, ouvindo cada ruído próximo, evitando ser visto por um vizinho ou por uma câmera de segurança, me sentindo mais uma vez um fugitivo do julgamento moral. Corro pras escadas de emergência e subo cheio de culpa para meu andar.
Finalmente acabou. Finalmente em casa, como quem acorda daquele traumático sonho onde está pelado no meio da rua mais lotada da cidade.